Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

quarta-feira, 3 de março de 2010

O MERGULHO




O MERGULHO
Início do outono no hemisfério sul

Crítica filosófica do conceito de "Queda Adâmica"






“E tu também, que buscas o conhecimento,é apenas uma senda e uma pegada da minha vontade; em verdade a minha vontade de poder caminha com os pés da tua vontade de conhecer a verdade!”
F.Nietzsche,
“Do superar de si mesmo”
em “Assim Falou Zaratustra”,
Tradução de Mario da Silva,
Círculo do Livro,1977




Prefácio

Porque criticar tão insistentemente o tema e o termo “Queda”?
Por que o termo em si me incomoda e aborrece.
Não só por sua imprecisão, mas por faltar à verdade dos fatos.
Pior que um termo ruim só um símbolo ruim.
Os valores que guiam os seres humanos são representados por estes signos presentes na nossa tradição.
Se não nos esforçarmos por melhorar sua clareza estaremos condenando os nossos descendentes a um esforço de exegese desnecessário já que todos concordamos que as coisas não se passaram bem assim.
O outro aspecto é psicológico.Jamais me satisfiz com a simbologia , interessante, mas primária, do gênesis hebreu , mesmo ressaltando a sua beleza imagética.
Antes de qualquer coisa , tal arranjo simbólico está carregado de culpa e dor em vez de mostrar, mesmo que simbolicamente, a maravilhosa dinâmica interna do Universo.
E é isto que move o místico: decifrar entre símbolos herméticos os princípios que podem representar um incremento no seu conhecimento e em seu poder sobre a criação.
Não há culpa no místico, mas sim curiosidade. Ele é o cientista do Eterno.
O místico não é um religioso, embora esteja imerso na religiosidade. Não lhe interessam histórias sobre demônios e infernos e ranger de dentes. O universo para o místico é límpido, poderoso, mas benigno, e seu Deus não lhe é hostil nem aterrador, mas sim um eterno Companheiro de Viajem, esta viajem que todos experimentamos e que eu gosto de chamar de mergulho na carne .
Por isso precisamos avançar as formas de simbolizar e de descrever nosso passado,de forma que , mesmo metaforicamente , expressões como corrupção, queda ou pecado original sejam banidas da nomenclatura mística por completa inadequação à compreensão atual que temos da criação e da nossa relação com o nosso Criador.

Mario Sales FRC,S.:I.:,M.:M.:







Introdução





“Eis a cena. Ela se passa em um instante (que mais tarde os exegetas dividirão em cinco partes). Marcos e João nada dizem sobre ele. Mateus o menciona de passagem. É Lucas quem o descreve em doze versos. Uma menina sozinha. Um anjo aparece e lhe diz algo assustador. Ela duvida, pergunta. O anjo explica. Ela aceita. O anjo parte”.
Poucos instantes são iguais a esse..É o instante em que nasce um novo monoteísmo; em que o velho testamento chega ao fim; que anuncia ,com nove meses de antecedência,uma nova era; em que, teologicamente, o eterno penetra na história; em que uma virgem se torna mãe.
O dia 25 de março,equinócio da primavera no calendário Juliano. Daí em diante, no hemisfério norte os dias serão mais longos do que as noites. Haverá mais luz que escuridão. Segundo uma tradição retomada pelo maior teólogo do século 6. Bernardo de Claraval, Nazaré, o nome da cidade em que se deu a cena, significa flor. Num jogo místico, São Bernardo escreve que a flor divina quis nascer de uma flor, no ventre de uma flor, na época das flores.
Na cena há dois personagens e um animal: a menina, o anjo e a pomba. É a antítese da Queda, em que também há dois personagens e um animal: Adão, Eva e a serpente. A serpente é um animal telúrico, do fundo da terra, que sobe enroscando-se numa árvore, ressentida por não poder chegar ao céu. Sua mensagem sobe do chão. Traz veneno. A pomba é um animal celeste. Sua mensagem desce do alto e traz graça.
Na Queda há uma árvore entre Adão e Eva. Ela divide o masculino do feminino. E a natureza selvagem, a produção anárquica do mundo vegetal, o instinto ainda não disciplinado pela razão. Na iconografia clássica da Anunciação há uma coluna entre Maria e o Anjo. Ela divide o divino do humano. É expressão da Ordem alcançada pelo uso da Razão, o rigor geométrico da arquitetura humana.
Santo Tomás de Aquino escreveu um opúsculo sobre Maria como a anti-Eva: com Eva, o pecado; com Maria, no momento da Anunciação, o contrário da maçã, a destruição da maçã. Ao entrar, o Anjo Gabriel saúda Maria com as palavras que, mais tarde, serão repetidas pelos fiéis: “Ave Maria,Gracia plena. Dominus tecum...O hino medieval “Ave Maria Stella” nos diz: “Ao ser pronunciado este Ave /pelos lábios de Gabriel/foi nos dado a paz/ao ser trocado o nome de Eva.”
Ave, a primeira palavra do Anjo, inverte Eva, como viram os antigos.
Desfaz o mal. ”

Trecho de um ensaio de João Moreira Salles para o Estado de São Paulo,26 de março de 2006, sobre o quadro a Virgem Anunciada de Antonello de Messina, em exposição no Museu Metrpolitan de Nova York.



A HERANÇA DO GÊNESIS

As doutrinas martinista e martinezista são tributárias do simbolismo bíblico.
É lá , no livro santo , que vamos encontrar as primeiras referências à queda do homem ,de um estado superior, angélico ,sem pecado , para um estado de dor e sofrimento.
O gênesis hebreu poderia ser , em certas passagens um Livro do Medo.
Causa medo o Deus que cobra de Adão a promessa de não comer da árvore do bem e do mal. Causa medo o Querubim de espada flamejante que expulsa o casal primordial do chamado paraíso.
Tudo é culpa e erro.
Nesta visão, homem e mulher são arquitetos da infâmia diante de um Deus benigno e Onisciente , no entanto, estranhamente incapaz de antecipar a serpente.
A simbologia moisaica , embora interessante , já há muito dá sinais de senilidade.
Evoluímos, de certo que não muito , como povo e como cultura, uns mais que outros.
Mesmo assim é hora de revisar e de proceder a uma atualização mística das imagens e dos símbolos que guiaram outrora um povo nômade e bárbaro , num período bárbaro e primitivo , para um novo tipo de momento histórico , de compreensão intelectual e de situação sócio científica.
E talvez devamos começar pelo conceito de “Queda”.

A mudança de paradigma

Só a sincronicidade de Jung pode explicar.Eu já tinha terminado este ensaio quando me caiu nas mãos o ensaio de João Moreira Salles sobre um quadro de Antonello de Messina (no qual , aliás , a Virgem Maria faz um gesto semelhante àquele que todos os martinistas fazem ao pedir permissão para falar durante um conventículo, mão esquerda no coração e a palma da mão direita estendida para frente) , ensaio que, em sua maravilhosa introdução , descreve como a Anunciação de Maria desfez em nós o mal ao inverter , pela boca do anjo , o nome da primeira mulher - EVA- na saudação a Maria, mãe do redentor – AVE.
Diz mais : no momento da Anunciação, dá-se também o fim do Velho Testamento, dos velhos símbolos.
É o início de uma nova e eterna aliança.Não falaremos mais em Queda.Agora discutiremos a Ascensão.


Discussão crítica do conceito de Queda

Perguntemos inicialmente: o que fez o ser , onipotente ,onisciente , criar um universo em camadas, com uma parte que podemos chamar divina e outra que podemos chamar humana , separadas aparentemente?
A resposta martinista e mística seria a necessidade de criar tensão.
Entre um e outro pólo da criação , entre as colunas de Jaquim e Boaz , o ser e a criação flutuam , suspensos entre os contrários e na energia criada entre estes pólos opostos.
A realidade é dual em estrutura e trina em manifestação,relata o breviário Rosacruz.
Assim , pela vontade de Deus,tudo que foi criado apóia-se em duas colunas essenciais , fundamentos de tudo que existe.
É pela existência destes dois pilares que se criam as condições para a manifestação da vida , não só entre o que está em cima e o que está embaixo , mas , de forma mais marcante , pelas condições criadas naquela região entre a esquerda e a direita da criação.
O terceiro ponto , nós mesmos, seres humanos , só existimos se instalados neste território dual e instável , aparentemente estável ,que chamamos REALIDADE.
Estabilidade para a qual contribuímos com nossa consciência , contribuição que é mais intensa quanto maior é o nosso grau de discernimento do papel que temos nesta interação de forças.
Ali , nesta região onde o fluxo de prótons,nêutrons,elétrons e de fótons é mais rico e denso,existimos.
Ali, naquela região instável e movediça, evoluímos.
E ,ao evoluirmos , cumprimos nossa maior missão como seres vivos que somos: servir como sensores do Todo Poderoso em seu próprio corpo , a Criação.
Sim, Deus se apalpa conosco,para se conhecer melhor.
Deus se toca, para perceber seus contornos e avaliar suas dimensões.
Nós somos os dedos das mãos do Todo Poderoso num exercício quase narcísico de autoreconhecimento.
É pela vontade Dele que Seus dedos atravessam o vazio e vem tocar a Sua pele sagrada.
É pela Divina Vontade que entramos nestes corpos de carne para experimentar as sensações de estar entre colunas.
É, portanto por Sua Sagrada vontade, que estamos neste plano de investigação , deleitando-nos com a colheita de todas as informações que pudermos conseguir para nosso Criador, sobre ele mesmo.
Não estamos neste mundo por acidente,mas voluntariamente.
Não somos seres deserdados por seu Pai, mas Luzes em missão, soldados obedecendo as ordens de seu comandante.
O que nos aconteceu,segundo o manuscrito 7 , página 7,do grau de associado, “...foi somente uma expansão do campo de operação necessária para englobar o desenvolvimento das faculdades do homem , que buscavam avidamente novas experiências de crescimento...”
Não caímos neste mundo , fomos lançados nele e , portanto , não estamos neste estado por que perdemos outro melhor , mas por que mergulhamos nele , de bom grado.
Nossa glória não está no espírito , mas na carne.
Nela conheceremos , através dela evoluiremos , e conosco , o Deus que nos enviou.
De forma alguma, esta é uma afirmação materialista.
Se pensarmos bem a noção de matéria é , em si, fantasiosa.
Supomos que existe um local idílico onde éramos só espírito , e este aqui , onde estamos, cheio de dor e sofrimento, onde somos só matéria.
Tais concepções são apenas um trauma aristotélico.
O mundo não é feito em pedaços. O mundo é um só.
A criação é unidade.
Não existe separação entre o mundo dos anjos e o nosso senão aquela que nosso grau de consciência da Unidade estabelece.
Estamos em um “...estado fictício de exílio ...” (Manuscrito 7 pág.7).
O que é em cima é embaixo,disse Trimegistus.
E eu completo que o que está em embaixo está em cima.
Deus está entre nós.Nós somos Deus manifesto.
Olhar nos olhos do outro é olhar nos olhos de Deus; mais que isso: se Deus também está em mim , quando olho para outra pessoa , Deus olha para Si mesmo.
Cabe ao martinista superar o que os Yogues e o Sankya chamavam de Maya , a ilusão da separação, a ilusão de sermos algo diferente D’ele.
Só quando o homem percebe em si a mesma divindade que o criou pode-se falar em iluminação.
Estamos num oceano de Consciência e energia em constante tensão e movimento, no meio das colunas.
Somos,todos nós e tudo que existe , o terceiro ponto.
E aqui chegamos como conseqüência da Vontade de Deus, portanto da nossa própria vontade,não por acidente , mas por necessidade.
A primeira condição para restabelecermos nossa consciência de Deus em nós é percebermos que nunca estivemos fora dele , que não há necessidade de regeneração já que não há degeneração, mas cumprimento de uma vontade de auto conhecimento do Todo Poderoso ao mergulhar-nos neste estado rico e variado, este vasto laboratório de conhecimento chamado mundo material.
A expressão mais adequada é “aumento da conscientização de estarmos nele como ele está em nós”, numa palavra, Unidade .


Suzano,25 de março de 2006
Mario Sales

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