Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

sábado, 21 de outubro de 2017

A ESTRANHA LOGICA DOS TEXTOS TRADICIONAIS DE CABALÁ

por Mario Sales


“Qual é o significado da expressão: ´elevou-se no pensamento`? Porque não dizemos ´desceu [no pensamento]?
De fato, dissemos: ´Aquele que fita a visão da Carruagem primeiro desce, depois ascende`.
Usamos aqui a expressão [ de descer] porque dizemos: ´Aquele que fita a visão (tzafiat) da Carruagem. ` (...).
Aqui, todavia, falamos do pensamento, [e, por isso, fala-se apenas de ascensão]. Pois o pensamento não inclui visão alguma e não tem qualquer final. E, tudo aquilo que não tenha nenhum final ou limite, não tem descida alguma.
Por isso, dizem: ´Alguém desceu ao limite do conhecimento de seu amigo`. Pode-se chegar ao limite do conhecimento de uma pessoa, mas não ao limite de seu pensamento. ”
Sepher Bahir, comentado por Arieh Kaplan, 1980, Imago Editora, versículo 88, págs. 58 e 59.


Capa do Bahir, no original



Quem já se aventurou a ler “A Doutrina Secreta”, o colossal trabalho de H.P.Blavatsky, sabe o que é estudar um texto obscuro. A linguagem do século XIX, as características da escritora, espontaneamente prolixa e labiríntica nas suas dissertações, as inúmeras interrupções na linha de pensamento para longas explicações sobre trechos pouco importantes, combatem aqueles cujo único objetivo é extrair deste vasto material alguma informação ou sentido.
Ler o Bahir, como de resto o Sepher Yetzirá, esbarra em problemas um pouco maiores.
Não se trata apenas de que seu autor (Isaac, O cego, ou outro) ter ou não um pensamento claro e uma linha de raciocínio retilínea, cujas conclusões nos pareçam coerentes com as propostas. Muitas vezes não sabemos do que o autor está falando, o que nos remete a uma questão fundamental ao estudante de Cabalá não judeu.
Toda a ramificação da cultura judaica tem duas raízes: de um lado, a Torah e o Talmude; de outro lado o cotidiano da vida judaica, suas práticas religiosas e crenças.
Aqueles que se interessam pelo estudo da Cabalá e não são judeus, podem, obvio estudar a Torah e ler o Talmude inteirando-se de suas imagens e conceitos; mas pelo fato de não terem vivenciado o ambiente familiar de uma família ou comunidade judaica, sente uma forte sensação de estranhamento ao se deparar com textos que, além da distância histórica no tempo apresentam peculiaridades de encadeamento de ideias próprias desta cultura.
Mesmo entre judeus, nem todos têm, ou interesse, ou capacidade para estudar Cabalá.
É preciso que, primeiramente, o interessado tenha uma forte motivação pessoal, um perfil compatível com horas e horas de leitura e interpretação e a paciência características dos exegetas em uma vez contemplando um texto estranho e obscuro, não ceder à tentação de abandoná-lo, esforçando-se em descobrir o código que o fundamenta.
Porque este código existe.
Os textos cabalísticos são difíceis de ser interpretados primeiro porque são textos de épocas em que o espírito didático não era prioritário ao escritor, e segundo, porque tais textos foram escritos por cima de uma cultura fortemente baseada na Torah e no Talmude.
E ainda existe um terceiro motivo para o esoterismo de tais textos: sua lógica interna é peculiar e em nada segue o cânone grego de pensamento, que produziu preciosidades como “Todos os homens são mortais; Sócrates é homem, logo Sócrates é mortal. ”
Não. As frases são caracterizadas por terem aparentemente um nascimento semelhante ao das Sephirot, como descrito no Sepher Yetzirá, “ Dez Sephirot do Nada”, como representação da ideia de que as Sephirot são manifestações puramente conceituais e diáfanas, sem natureza alguma material.




Rabino Arieh  Kaplan

Como no trecho acima: “Aquele que fita a visão da Carruagem primeiro desce, depois ascende. ”
Ou na pergunta: “Qual é o significado da expressão: ´elevou-se no pensamento`? Porque não dizemos ´desceu` [no pensamento]? ”

Salvo questões inerentes as imperfeições de tradução do original em inglês, problema ao qual todo leitor deve estar atento, no esforço de esclarecer este enigma, o Rabino Arieh Kaplan explica que “O conceito de pensamento é igual ao de “acima”. Não importa o quão alto se alcance, pode-se ir mais além. ” E conclui: “Por isso a palavra “elevar” é empregada”.

Ao longo de sua explicação[1] o Rabino Kaplan dissertará sobre a natureza do pensamento, a impossibilidade de compreender a natureza da mente que pensa, o simbolismo da expressão “Merkavah-Carruagem” como um exercício de vidência espiritual,(já que se refere a esta prática pré-Cabalística que durou do século II AC até o século VIII DC, aonde místicos judeus, baseados na visão do livro de Ezequiel, 1, 1-28, através da meditação, se elevavam espiritualmente a níveis que eles chamavam de Palácios, em número de sete, sendo que o sétimo palácio representaria o encontro com a Divindade).

Sem essa explicação a expressão “fitar a visão da Carruagem...” não parece compreensível. Ainda mais porque na publicação, a expressão vem com o termo “visão” em letras minúsculas, e “Carruagem” em letras maiúsculas, como se fossem coisas diferentes. Um problema da tradução e não do texto.

A expressão precisa também ser elaborada pelo leitor neófito, entendendo e extrapolando que carruagem significa transporte, e que na época seria um símbolo adequado do ato de transportar-se através da meditação, à níveis mais elevados.
Explicado que “fitar a Visão da Carruagem”, portanto, é uma expressão que designa um ato de percepção de uma expressão do divino, conseguida durante o estado de Epifania pelos místicos judeus, o rabino Kaplan explica a natureza do fenômeno da vidência espiritual e das Sephirot associadas ao fenômeno.

Em nenhum momento, no entanto, ele esclarece por que o indagador do versículo se espanta por não se usar a expressão “desceu no pensamento”, ou porque, no versículo, é dito “Aquele que fita a Visão da Carruagem, primeiro desce, depois ascende. ”
Seguindo a peculiar forma de pensar dos versículos do Bahir, dever-se-ia atentar para o significado da expressão “primeiro desce”. Isto, no entanto, não é discutido.
As perguntas, dos discípulos que em princípio estão interrogando o mestre Nehuniá Bem Hakaná, são tanto ingênuas quanto profundas e suas perplexidades inexplicáveis. As respostas, da mesma forma, não são esclarecedoras, como se esperaria de um texto que se diz “O Livro da Iluminação”.

Linha por linha, o conhecimento se oculta em um código de conceitos e visões de mundo típicas da cultura judaica e da época em que foi redigido, duas camadas a serem penetradas pelo leitor-interpretador, um exercício de fôlego e paciência.
Nos comentários do Rabino Kaplan conseguimos um importante suporte neste esforço, sem o qual seria impossível compreender o que significa realmente o que está escrito em cada trecho deste importante texto de Cabalá. Mesmo assim não é suficiente, como de resto nenhuma explicação conseguiria ser. Já que se trata de um livro acerca do mais profundo conhecimento do judaísmo, a interpretação desafia aquele que à ela se dedica, principalmente se este não deseja, por pura precipitação, extrair sentidos equivocados do texto.
Some-se a isso a peculiar maneira de encadear ideias que observamos ao ler passagens como esta cima.

E este não é o melhor nem o mais complexo exemplo. Há outros, mais instigantes.
Como no versículo 79, no trecho que diz:

“O ouvido é, também, infinito, e nunca saciado. Está, portanto, escrito (Eclesiastes 1:8): “O ouvido não se farta de ouvir. ”

E em seguida, conclui:
“Porque é assim? Porque o ouvido tem a forma do Alef. (...). Por isso o ouvido não se farta de ouvir. ”

Uma conclusão esotérica, no mínimo, já que o ouvido não tem a forma do Alef, fato que dá uma pálida ideia daquilo que aguarda os bravos exploradores de textos cabalísticos.
Mais esotérico ainda é o fato do Rabi Kaplan não confirmar ou mesmo tecer considerações sobre esta estranha semelhança declarada no texto.

Kaplan diz: “A visão e a audição correspondem, respectivamente, a Chochmá- Sabedoria e Biná-Compreensão. Podemos apreender o Divino com compreensão, mas não com Sabedoria. O nível mais elevado de nossa compreensão é, portanto, Biná-Compreensão, o nível do ouvido, mas mesmo aqui existe um reflexo de Kether- Coroa, no Alef do ouvido (Ozen).”







O que eu quero evidenciar aqui é que, mesmo seguindo os complicados códigos da Cabalá, não se encontra um sentido ou uma relação entre Aleph e Ouvido (Ozen) , já que, como vimos, Aleph corresponde a Keter-Coroa e o Ouvido a Biná-Compreensão.
Para resolver a contradição, Kaplan usa um recurso no mínimo curioso, criando uma conexão em princípio não existente com o seguinte raciocínio:
“O nível mais elevado de nossa compreensão é, portanto, Biná-Compreensão, no nível do Ouvido, mas, mesmo aqui, existe um reflexo de Keter-Coroa no Alef de Ozen (do Ouvido)
É esta a explicação, a ligação está em um reflexo que aparentemente saiu da cartola de Kaplan. E está feita a correlação.
A explicação, portanto, esclarece alguns pontos e deixa outros obscuros, mesmo que estejamos falando da mais didática autoridade em seu tempo sobre conhecimento da Cabalá.
Sua morte precoce, de ataque cardíaco em sua casa, privou estudantes de todo mundo de sua visão e esforço para tornar estes textos fundamentais da cultura judaica acessíveis a judeus e não judeus.
Mesmo assim, trechos e versículos dos livros clássicos sobre Cabalá ainda carecem de uma interpretação mais completa e mais compreensível para aqueles que como nós pensam, não como um judeu, mas como um grego.
Superemos este problema. Estas leituras, de qualquer forma, devem ser feitas com o cérebro e com a alma, na esperança da que a intuição nos forneça a informação que o intelecto, às vezes, não consegue dar.




[1] Bahir, O Livro da Iluminação, 1980, Ed. Imago, pág 185

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