Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

domingo, 2 de novembro de 2014

CAMADAS

por Mario Sales, FRC,SI,CRC gr.18°




Lá pelas tantas do artigo "O Inimigo Interno", mencionei que especialistas do pensamento também podem se equivocar e defender tiranias, regimes de exceção, levados por um romantismo aparentemente inexplicável.
Isto pode ter causado estranheza naqueles que ainda crêem que a razão é o melhor instrumento de compreensão e intervenção no Mundo da Vida (o "Lebenswelt" de Jürgen Habermas).
Não é.
Há décadas, a razão está sob suspeita.
E tudo começou ao final da 2a Grande Guerra.
Os pais do pensamento filosófico moderno e contemporâneo, os alemães, preconizaram naquela época a mais organizada, científica e metódica máquina de genocídio já vista.
As análises posteriores de Hannah Arendt sobre a "banalidade do mal" em seu livro "Eichmann em Jerusalém"; a descoberta da filiação nazista de Heidegger e de sua traição ao seu mentor, Edmund Husserl, somadas a percepção de que a ciência, cume da razão humana, (usada para a construção tanto das câmaras de gás de Auschwitz-Birkenau e Treblinka quanto na dos terríveis mísseis V2, que mataram milhares de ingleses), não era necessariamente uma atividade sempre voltada ao bem da humanidade, acabaram com esta ilusão.
A lógica não nos protegeu da sordidez, já que o método de extermínio de judeus era extremamente lógico.
A razão não nos protegeu do mal, já que a guerra, antes justificada por valores morais (a honra), ou religiosos (a vontade de Deus), agora encontrava justificativas racionais (criar um império de seres supostamente superiores geneticamente).
E já que falei de Heidegger, em nada sua visão política distorcida e equivocada prejudicou sua lucidez como pensador. Suas contribuições à filosofia ainda são importantes e fundamentais, mesmo que como cidadão e ser humano ele tivesse demonstrado um indivíduo precário.
As duas atividades da mente, a emocional e a essencialmente intelectual, são camadas diferentes de nossos filtros mentais.
Podemos ter um raciocínio claro e poderoso e emocionalmente sermos frios ou maquiavélicos. O que não é o mesmo que dizer que é o intelecto que nos torna mesquinhos ou cruéis, já que não é a faca na mão do assassino que perfura a carne da vítima, mas sim a mão do algoz movida pela vontade de seu cérebro.
Instrumentos são tão inocentes quanto qualquer coisa inerte pode ser. Não possuem valores, não decidem qual o objetivo e finalidade de seu uso particular por este ou aquele indivíduo.
Instrumentos são coisas mortas que ganham vida na mão de seus usuários, da mesma forma que o barro ganhou vida pela intervenção do sopro divino.
Não há vida sem o sopro, apenas barro.
O segredo é o sopro, o alento.
Assim, a razão não merece confiança, se não conhecermos as emoções por trás de seu uso.
Na compreensão das atitudes, entendamos, os resultados finais dependem de camadas mais profundas de filtragem, e o que a razão trabalhará, inocente e competentemente, será sempre o que restar da filtragem da emoção.
É na filtragem da emoção que se define o material a ser elaborado, nada mais, nada menos. Caberá à razão, apenas, justificá-lo pelo discurso e viabilizá-lo através da técnica.

Existirá uma camada anterior a da emoção?
Existem controvérsias.
Os biólogos e bioquímicos dirão que antes de sentirmos, certas substâncias em maior ou menor quantidade em nosso sistema endocrinológico e neuroquímico nos levarão a sentir o que sentimos, sendo a emoção escrava da neuroquímica e dos hormônios.
Espiritualistas, por sua vez, dirão que o espírito ou a alma ditará ao corpo certas secreções que levarão a certas emoções e daí em diante, na cascata de eventos.
Existem aqueles que acham que ambos estão corretos, e preferem um pensamento intermediário, em que alma e o cérebro dialogam com o meio externo, materializando compreensões resultantes destes diálogos.
Assim o homem não seria produto de seu meio, nem o meio produto dos homens, mas ambos refletiriam a combinação de mútuas influências de um sobre o outro, o que geraria o resultado final.

 QUADRO 1



Entrariam no cálculo deste resultado as consequentes alterações descritas dentro do ser humano, as tais filtragens, que seriam afetadas pela experiências e, ao mesmo tempo, gerariam novas experiências.
O que chamamos Mente seria o conjunto de ações neuroquímicas, emoções e razão.
De qualquer forma, antes da razão "fundamentadora" e justificadora, e da técnica que dá materialidade às idéias surgidas da reflexão racional, estariam as emoções, pela velocidade destas, em contraste com a natural lentidão daquela.
É preciso estar atento às camadas mais profundas, portanto.
O que move as pessoas vem do fundo, e por mais límpido e cristalino que pareça seu discurso, ele é apenas a consequência de intenções já filtradas e direcionadas pela camada emocional, que é mobilizada apenas e tão somente por traumas capazes de varar até às regiões abissais da mente e ali depositar impressões diretoras.
Esses traumas e modulações da mente profunda são mais comuns em momentos da vida que somos mais mentalmente indefesos, geralmente a infância.
Nada impede no entanto que, dependendo da intensidade destes traumas pessoas adultas também não tenham seu ser profundo alterado por experiências emocionais no período da maturidade.
Esta análise nada tem de original.
Escrevo, descrevo e compartilho estes pensamentos apenas como um exercício de organização de conceitos, que é o que faço todo o tempo neste imaginário.
Talvez, quem sabe, não sejam conceitos tão óbvios para outros e possa de alguma forma, auxiliá-los a compreender sua própria natureza.

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