Multi pertransibunt et augebitur scientia (Muitos passarão, e o conhecimento aumentará).

domingo, 19 de janeiro de 2014

A MULHER, A SENSIBILIDADE E O MISTICISMO

por Mario Sales, FRC,SI,CRC





Simone de Beauvoir era uma filósofa e mulher.
Identificada na grande maioria das vêzes pelo seu papel de conscientizadora de uma geração e mesmo de suas companheiras de sexo, afirmando que o comportamento das mulheres em sociedade era, e sempre foi, mais um produto da cultura do que da biologia,(o que é correto), Simone também exemplifica, a certa altura de sua fala no vídeo, a importância dos sentimentos humanos na carreira e no desenvolvimento do escritor e de sua obra.
Repetindo o que muitos, antes e depois dela, já disseram de outras formas, ela relembra em uma entrevista feita por Sartre, ele mesmo, que um comentário dele a marcou profundamente, onde Sartre dizia:"- Bote mais de voce no que voce escreve. Voce é muito mais interessante do que esses Josés que existem por aí..." E continua Simone:" Isto me atingiu muito, até me intimidou, porque eu pensei, se eu tiver de me dar à literatura dessa maneira, profundamente comprometida, isso levaria a coisas muito sérias como o amor, a vida, a morte, e eu hesitei muito antes de fazer isso."
Que o escritor deve escrever com o fígado e o coração, e não com a cabeça, isto eu já sabia. Mas que outra pessoa, como eu, sentisse o peso do medo de fazê-lo, foi a primeira vez que ouvi da boca de uma celebridade literária da filosofia ou de outra linha de literatura qualquer.
Muitos devem sentir um receio semelhante mas só mesmo uma mulher para dizer isto, corajosamente, com todas as letras. Porque a mulher transita na frequência da emoção, debate e trabalha sobre emoções e lida com mais naturalidade com elas do que os parceiros do sexo masculino, culturalmente treinados para ocultar seus sentimentos.
Eu mesmo, como escritor místico e como ser humano evito temas e assuntos que não debato em textos pelo caráter demasiadamente direto destes textos na vida cotidiana de místicos e não místicos e pelo receio de não ser compreendido, (como se isto, o equívoco, fosse algo evitável, ou possível de ser controlado).
Há muito que se sabe em Teoria da Linguagem da existência de dois polos no ato da conversação: o emissor, aquele que fala, e o receptor, aquele que escuta.
Mesmo que o emissor use de todos os recursos de oratória e didática na apresentação de seu tema ou proposição, é óbvio que uma parte decisiva do sucesso de sua exposição repousa na capacidade do receptor de compreender o que foi dito. E a palavra sempre será a mãe do equívoco, exatamente por causa disso, não por causa dela, palavra, e sua significação, mas por causa da compreensão intelectual daquele que a escuta, e que determinará a conotação daquilo que ouve.
"Um charuto, às vêzes, é apenas um charuto", lembrava Freud, o mestre interpretativo de um segundo sentido por trás das palavras, de uma conotação atrás de uma significação. E como ele disse, embora não fosse esse o motivo da sua ênfase, só "ás vêzes", um charuto é apenas um charuto.
Sabendo disso, e lidando com um dos assuntos mais delicados de se tratar, a prática mística, em um meio povoado tanto por pessoas sensatas como por outras nem tanto, por medo de não ser compreendido, muitas vezes, me calei.
A alguns amigos que com sinceridade me repreendiam dizendo coisas como "você está pegando pesado", ou coisa assim, sempre respondi que, "pelo contrário, muito do que eu gostaria de discutir aqui no blog não sai de meus dedos, por prudência e bom senso".
Só que, frequentemente é difícil estabelecer a linha que separa a covardia da prudência.
Mas como disse, isso dificilmente ocorre com mulheres. Uma das qualidades da mulher é sua franqueza ao lidar com seus medos, ao descrever suas hesitações, ao narrar detalhes de seus sentimentos.
Mesmo quando delicadas, mulheres sabem disto, certas coisas precisam ser ditas, não para tornar a nossa vida mais fácil, mas para tornar mais fácil para outros a expressão de seus sentimentos. E sentimentos não expressos, emoções não esclarecidas, como dizia Carl Rogers, são passíveis de se transformar em neuroses, em aflição.
Mas o que precisa ser dito, e como dizê-lo de forma a causar uma polêmica sanitária e saudável ao mesmo tempo? Esta é a questão de um milhão de dólares.
Místicos modernos, como os antigos, precisam de palavras e de textos. São os textos que alimentam o misticismo, o que eu chamei em um outro ensaio de "misticismo literário". Livros sagrados, aceitos e apócrifos, manuscritos de iniciados, textos esotéricos sem autor, um rico material que delicia mentes nos últimos séculos, em busca de uma forma ou de um veículo para sua sensibilidade.
O fato é que aquilo que o místico sente é solitário e pessoal. De nada serviria a causa mística se não fosse compartilhado. E o pouco que o foi,(já que pessoas sensíveis sentem muito mais coisas do que aquelas que conseguem colocar em uma folha de papel), foi importantíssimo na criação de um legião de exegetas, de interpretadores, em busca do real sentido por trás de certos textos.
Isto sedimenta a base física comum na qual o místico caminhará ou influenciará pessoas. Seu espírito enriquecerá este terreno com sua visão peculiar e compreensão diferenciada, mostrando novas vestes para antigos conteúdos, traduzindo para a linguagem da época histórica a que pertença o sentido das palavras que jamais se cansam de ecoar.
A linguagem, o texto, são coisas materiais, passíveis de serem copiadas, estáticas em sua forma e apresentação. Podem ser compreendidas em parte pela razão.
O espírito deste texto, no entanto, só virá à luz por força da ação da sensibilidade, algo mais complexo que o intelecto e que, em muitas oportunidades, o transcende.
Mulheres como místicos sempre foram muito menosprezados, e ambos pelo mesmo motivo: ambos trabalham na frequência da sensibilidade, não na frequência da razão. E portanto, possuem muito mais dificuldade de expressar suas percepções que, via de regra, são complexas, multidirecionais, multicoloridas, e não linhas encadeadas e retas como aquelas do raciocínio ortodoxo. Expressar sentimentos, costuma-se dizer, é coisa para artistas, não para pensadores.
Por isso o místico é praticante, como a mulher, de uma Antiga Arte, a Arte de perceber a realidade através da sensibilidade e não da sensualidade. Por isso ele pode ler textos com outros olhos, os olhos do iniciado. A mulher, em parte por ser mulher, da mesma forma tem o chamado sexto sentido, o sentido da percepção do que está atrás do que se apresenta. Esta sagacidade feminina é mais psicológica e cultural do que mística, já que a mulher, submetida por uma cultura machista, aprendeu pouco a pouco a arte da sutileza, a capacidade de olhar para além do que se mostra. A mulher, por necessidade social, aprendeu a ser sutil, no falar e no ouvir, de forma a descobrir nos que falam não o que dizem, mas aquilo que não dizem.
Isto, em si, já seria um divisor de águas.
Perceber o que nos cerca não para além dos sentidos hodiernos, é usar a sensibilidade, o dom que revela aspectos ocultos de tudo que existe, manifesto e imanifesto. Se não fosse pelo fato de que as mulheres, como lembra Simone, não nascem mulheres, tornam-se mulheres, eu poderia dizer que todas as mulheres sempre seriam boas místicas; mas, como se sabe, não é verdade.

No entanto elas possuem um equipamento psicossocial muito mais competente do que o masculino para lidar com a percepção além dos cinco sentidos, a da sensibilidade. 

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